De marchinhas e paixões

Esperava ansiosamente por aquela época. Tal como uma criança à espera de um desejo, punha-se a contar os dias, as horas e até mesmo os minutos. Esquecia dos problemas, das dificuldades financeiras, das discussões quase que diárias com a mulher, da correria com os filhos. Esquecia inclusive, vejam só, de que não gostava de bichos de estimação – apesar de ter dois cães e ter de levá-los para passear, a contragosto, de manhãzinha e na volta do trabalho.

Um mês antes, pelo menos, se punha a ensaiar quase que cotidianamente. Para desespero dos vizinhos, que sempre escutavam os últimos acordes altas horas da madrugada. Até sair com os amigos de futebol, para beber, ficava relegado a segundo plano. O que valia, naquele período, era ensaiar, exaustivamente, mais uma das marchinhas feitas para o tradicional concurso da cidade.

Sandoval nunca ganhara uma edição daquela que era, na sua visão, a mais árdua competição do mundo. Para ele, era como se recuperasse os ares da mocidade, da boa e doce boemia. Imaginava-se cantando, a plenos pulmões, mais uma de suas criações. Nas palavras dele: “Dessa vez, o mundo há de descobrir o artista que existe por detrás desse humilde e correto funcionário público”.

Na repartição, chegava a tirar férias no mês em que ocorria o concurso. Tudo porque não queria fazer feio. Mais do que isso: ansiava ver as pessoas o aclamando e cantando sua canção. Queria realmente ser um artista do povo.

Meu Deus, mas que dificuldade… preciso encontrar o tom certo, dizia enquanto tentava conciliar letra e música. Tinha certeza, absoluta, de que chegara a hora do sucesso e que, por isso mesmo, seria ungido pelo júri e pelo público. Até que…

Ao fazer a inscrição da sua marchinha no tradicional concurso, um rapaz responsável por carimbar a cópia impressa da música e dar o ok da organização, fez um breve, mas marcante comentário: “Que Deus, de fato, o ajude, pois tamanha insistência um dia vai fazer com que sua composição seja considerada campeã. Afinal, apesar de tudo o senhor não desiste.”

Como assim, o que significa esse “apesar de tudo”? – indagou Sandoval. “Olhe, vou ser bem honesto. Desses 25 anos em que o senhor se inscreve, pelo menos faz uns dez que sempre ouço, por parte dos organizadores e dos jurados, que suas músicas não tem emoção, que elas estão ultrapassadas. Me desculpe a franqueza, mas é que às vezes é melhor dar um chute no estômago do que ficar na expectativa de fazer a coisa errada.”

Aquela franqueza lhe doera a alma. Ficara sem reação, estupefato. Como esse rapaz tinha a audácia de dizer aquilo? Revoltou-se e foi embora sem se despedir. Chegando em casa, ainda um tanto quanto bravo, pegou o violão e se pôs a cantar a música inscrita. Mas eis que percebeu, pela primeira vez naqueles anos todos, que de fato faltava algo. Pôs-se a chorar e a maldizer todos. Mas por que nunca ninguém tinha dito aquilo antes? Por quê? Nem sua própria mulher… De enraivecido e inconformado, passou à tristeza. E a lamuriar que ao seu esforço faltava um algo mais: a tão e simples paixão. Que também estava em débito na sua vida familiar.

Na contramão dessa história, eis aqui uma marchinha que este colecionador de histórias considera graciosa e genial. E que é uma delícia na interpretação de um de seus autores, que por sinal é um desses personagens a quem, nesses tempos de reacionarismos bárbaros, esquecemos de dar a devida atenção mais do que merecida. “Papagaio enjoado” é a marchinha do querido amigo Luiz Carlos Roque, o Roque da Vila. Confiram…