A intermitência de Duílio

Nunca cedera na vida a uma gota de lágrima. Os irmãos, mais velhos por sinal, diziam que não se lembravam de cena desse tipo, nem mesmo quando todos, de castigo, levavam cintadas do pai na infância.

Passados mais de 50 anos, Duílio continuava impávido diante de qualquer situação que causasse comoção. Nada, absolutamente nada alterava os músculos da sua face.

Vivia recluso numa casa de vila, bem próximo ao centro. Limitava-se a sair apenas para compras usuais e para uma rápida passagem na banca de revistas, cujo proprietário se acostumara com a sua mania de folhear rapidamente as manchetes das capas de jornais.

Não tinha filhos – ao menos os vizinhos não sabiam – nem recebia visitas. Apenas uma vez um dos irmãos foi vê-lo, algo que durou exatos 10 minutos. Suas companhias eram um toca-discos e uma TV, que eram alternados com a leitura de vários livros – todos herdados da casa dos pais. Nada de animal de estimação nem de plantas.

Diziam que cozinhava. E bem, pois quando se punha a preparar comida, exalava uma fragrância saborosa da casa, capaz de despertar o mais arguto e faminto estômago que passasse naquela hora em frente do sobrado de cor amarela.

Ia também ao banco para pagar as contas e receber o dinheiro da aposentadoria – fora durante muito tempo “profissional de gabarito” de uma empresa automotiva. Começou como office-boy e terminou como chefe de departamento, comandando cerca de 500 operários nos áureos tempos. Na sua despedida da firma, fizeram-lhe uma homenagem e acabou recebendo uma placa de reconhecimento pelos bons serviços prestados.

Mas um dia, que seria mais um como tantos outros, o inusitado acontece. Duílio, que evitava falar com as pessoas – sequer cumprimentava os vizinhos – foi conversar com aquele rapaz, que apertava sem parar a campainha da casa.

“Mas o que você quer?”, reclamou.

“Me desculpe, mas o senhor era amigo da Erotildes?”

A única Erotildes, que conhecera na vida, fora uma menina por quem se apaixonara, perdidamente, aos 17 anos. Porém, nunca obtivera a aprovação da moça. Haviam sido amigos até os 21 anos, quando ela, sem muita explicação, casou com um primo.

Nem um mês transcorrera e Erotildes se mudou da cidade. Nunca mais a vira. Até aquele momento em que o filho dela batera à sua porta.

“Minha mãe faleceu recentemente. Em seu leito de morte, ela me fez jurar que encontrasse sua grande paixão da juventude para lhe dizer que sempre o amara. Cá estou.”

Então, Duílio se pôs a chorar, copiosamente, na frente do sobrado. Acabou abraçado e amparado pelo rapaz que, ato contínuo, entrou na casa e passou a contar sobre a vida de sua mãe. A tarde foi longa e só terminou com um “Obrigado e até logo” daquele senhor de 70 anos, ao abrir a porta de casa, no meio da madrugada. Que, dessa forma, dava assim uma (nova) chance para a vida e seus (des)encantos.

A respeito de um tempo que não volta mais, “Dança da solidão”, de Paulinho da Viola, é a música escolhida para refletir sobre Duílio e seus sortilégios…

DANÇA DA SOLIDÃO
(Paulinho da Viola)

Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte, por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia
Apesar de tudo, existe uma fonte de água pura
Quem beber daquela água não terá mais amargura

Para quem preferir, eis o vídeo com Marisa Monte e o próprio mestre Paulinho: