A música da semana – 23 a 27 abril/2012

A canção que fecha esta semana remete à minha infância. Meu pai colocava a fita cassete para tocar no rádio. A gravação era da Simone. Novato na vida e na música, achava a letra meio melosa demais, repetitiva. Porém, a interpretação da Simone dava um tom forte e fazia com que você quisesse ouvi-la mais de uma vez. Vendo a letra, hoje, considero-a inspirada e um hino, perfeito, para quem precisa se erguer e dar a volta por cima – qualquer seja o fato envolvido. Enfim, é preciso se gostar primeiro para que os outros possam gostar de você. “Começar de novo” é a escolha da semana.

 Começar de novo

(Ivan Lins)

 

Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
 

Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
 

Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo…

Para quem preferir, eis um vídeo da música. Na voz da Simone, claro…

As intimidades do amor

A história é real. Há até quem duvide, mas é. E, por isso, merece ser contada. Vamos ao que importa. E o que importa, no caso, é que Alberto e Cibele estavam em seu primeiro encontro. Por insistência de Alberto. Pois se dependesse de Cibele, jamais estariam ali, naquele bar. Simpático, engraçado e com uma lábia daquelas. Era vendedor e foi justamente por saber seduzir bem as pessoas pela conversa que acabara vencendo a resistência dela para saírem.

Secretária, trabalhava em um consultório médico. E não é que aquele encontro, sem grandes pretensões, estava deixando a moça um tanto quanto surpresa? Cibele se encantara pelo ótimo senso de humor dele. Conversa vai, conversa vem, um sorriso daqui, uma risada dali… Decidiram passar a noite juntos. Alberto, como bom cavalheiro, pagou a conta no bar. Ansioso, levou-a para um hotel simples e bem arrumado que conhecia no Centro Velho. Mais ansioso ainda ficou quando pegou a chave do quarto.

De tão ansioso, queria levá-la no colo e ir pelas escadas. “Calma, amorzinho, são seis andares. Acho melhor usarmos o elevador, tá?”, disse Cibele. Mal entraram no dito cujo, ela já foi o apertando contra um dos cantos. E o beijando de tal forma que, ao chegarem ao andar, não teve dúvidas. Agarrou-a ferozmente, puxou-a pelos braços e quase arrombou a porta do quarto.

Jogou-a na cama. E foi um tal de arranca roupa daqui, joga ali – sapato, vestido, meia, gravata, calça… Enfim, fizeram amor mais de uma vez. Alberto estava extasiado. Cansado. Há tempos não se sentia tão bem assim. Com aquela bela visão feminina ao seu lado, caiu em um sono profundo. E sonhava com ela. Era uma noite perfeita.

Mas eis que, de repente, o despertador do celular dele toca. Seis horas da manhã! Xingou, e muito, aquele barulho. Porém, lembrou-se e entrou em pânico. Havia marcado visita a um cliente, daqueles bem difíceis de agradar, e que o mero fato de conseguir agendar um horário já era por si só uma conquista. Tanto que todos os colegas de Alberto ficaram com inveja. A venda era certa, dizia-lhe o supervisor. “Agora, basta apenas assinar o contrato”, comentava a chefia.

“E agora, meu Deus! O que eu faço?” Sabia que aquela venda, se concretizada, lhe renderia uma tremenda comissão. E foi isso que fez com que se vestisse o mais rápido possível, deixando a moça envolta nos lençóis da cama. Acabou deixando um aviso para ela com o rapaz da recepção: “Tive de ir. Mas levo comigo a maior das lembranças dessa noite incrível que passamos juntos.” Tinha certeza de que Cibele iria gostar do seu recado. Que o acharia um homem romântico e que, daí em diante, várias outras noites juntos se sucederiam.

Porém, no ponto de ônibus, começou a se remexer. Discretamente, mas se remexia. Com o passar do tempo, sentiu-se muito desconfortável. Estava muito incomodado com suas roupas. Parecia que estavam o sufocando – como se já não lhe bastasse a sonolência. Passou a suar frio. Não via a hora de descer do ônibus. Quando isso aconteceu, correu para o primeiro banheiro público que vira. E assim que soltou o cinto da calça e a abriu… O que era aquilo? Não se lembrava de estar usando uma cueca preta. Aliás, que cueca, nada. Inacreditável! Era uma calcinha, ou melhor, a calcinha de Cibele!

Na correria, para não perder o compromisso, vestiu-se de qualquer jeito – nem se olhou no espelho do quarto – e daí a confusão. Após a infeliz descoberta, entrou no primeiro supermercado que encontrou e comprou um pacote com cinco cuecas. Foi novamente ao banheiro, trocou a peça – “Ai, que alívio!” – e jogou a calcinha fora. Chegou uns 20 minutos atrasados ao encontro. E levou outros exatos 20 para fechar a melhor venda da sua vida.

Felicíssimo, ligou para o supervisor para dar a boa nova. “Excelente, Alberto. Tinha certeza de que você conseguiria. Agora, me desculpe se estou sendo intrometido, mas vê se toma cuidado com as mulheres com quem você sai, né?” Não entendera nada. Será que seu chefe conhecia Cibele? E quem lhe contara que passara a noite com ela?

“Meu caro, a mulher esteve aqui logo cedo. Tínhamos acabado de abrir o escritório. Ela estava brava, mas muito brava. Disse que você era um tremendo de um cafajeste. Fez um escândalo e gritou para todos no andar que você aproveitou-se dela e que ainda por cima teve a cara de pau de levar a calcinha dela como lembrança de seu ato machista de sedução.”

Aquelas palavras não caíram bem para Alberto. O fato é que o vendedor do ano, que já não era bem visto pelos outros rapazes da empresa, ficou muitíssimo mal visto pelas mulheres que trabalhavam naquele escritório. Todas, sem exceção, passaram a olhá-lo, e muitas vezes tratá-lo, como um perfeito canalha. Um sujeitinho impertinente e, pior, um roubador de calcinha. Tanto que as moças passaram a evitá-lo, com medo de que ele pudesse roubar algum objeto íntimo delas.

Nunca mais vira Cibele. Até tentara ligar para ela, mas sem chances. Nada de atender sua ligação. O mais inacreditável é que essa má fama só fazia crescer, inclusive por todos os andares daquele prédio comercial. E mesmo nos bares e restaurantes da redondeza. Não podia contar a verdade. Afinal, quem acreditaria que aquele “terrível ladrão de calcinhas” era, na verdade, apenas um rapaz atrapalhado e ansioso que vestira, sem querer, a calcinha da mulher com quem fizera amor?

A música da semana – 16 a 20 abril 2012

Tem gente que a considera precursora da Bossa Nova. Controvérsias à parte, a música dessa semana é uma homenagem a Henri Salvador . “Dans mon île” é uma deliciosa canção francesa, que merece ser ouvida – ainda mais para quem não a conhece. Enfim, lá vai a letra. Ah, sim, como não sei francês, perdoem desde já eventuais erros na grafia. Junto segue uma possível tradução da música que, se não me engano, é do final dos anos 50. Aliás, como também não tenho certeza da autoria, optei por não atribuí-la a Henri Salvador – quem souber e puder esclarecer essa dúvida, agradeço desde já.

 
DANS MON ÎLE

Dans mon île
Ah comme on est bien
Dans mon île
On n’fait jamais rien
On se dore au soleil
Qui nous caresse
Et l’on paresse
Sans songer à demain
Dans mon île
Ah comme il fait doux
Bien tranquille
Près de ma doudou
Sous les grands cocotiers qui se balancent
En silence, nous rêvons de nous
Dans mon île
Un parfum d’amour
Se faufile
Dès la fin du jour
Elle accourt me tendant ses bras dociles
Douces et fragiles
Dans ses plus beaux atours
Ses yeux brillent
Et ses cheveux bruns
S’eparpillent
Sur le sable fin
Et nous jouons au jeu d’Adam et Eve
Jeu facile
Qu’ils nous ont appris
Car mon île c’est le paradis

NA MINHA ILHA 

Na minha ilha
Ah! Como a gente fica bem
Na minha ilha
A gente não faz nada
A gente se doura no sol
Que nos acaricia
E a gente se espreguiça
Sem pensar no amanhã
Na minha ilha
Ah! Como é doce!
Bem tranquila
Perto da minha querida
Embaixo do grande coqueiro que se balança
Em silêncio nós sonhamos em nós
Na minha ilha
Um perfume de amor
Se dispersa
Desde o fim do dia
Ela corre em minha direção estendendo seus braços doces
Doce e frágil
Em seus belos contornos
Seus olhos brilhantes
E seus cabelos castanhos
Se espelham
Sobre a areia fina
E nós brincamos o jogo de Adão e Eva
Jogo fácil
Que eles nos ensinaram
Porque nossa ilha é o paraíso

Segue o vídeo na bela interpretação de Henri Salvador:

Caveirão

Chamava-se Roberval. Tinha um opala verde que os amigos, carinhosamente, apelidaram de Caveirão. Diziam que quem entrasse naquele carro à noite só saía na manhã seguinte.

Branco, magro, quarentão e com três filhos, Roberval conhecia todos os bares, botecos e boates que se possa imaginar – dos melhores aos mais típicos risca-faca. “O negócio é o seguinte: tá com medo, então por que veio?”, indagava sempre que alguém ameaçasse deixá-lo sozinho, na companhia do seu Caveirão. Malandro dos bons, conhecia tudo e um pouco mais da noite.

Todos gostavam dele. Gente boa, colecionava amigos por onde passasse: garçom, dono de bar, segurança de casa noturna… Técnico de informática, fazia do trabalho uma boa desculpa para poder varar madrugadas a fio, já que não tinha horário fixo para atender seus clientes. E como o homem gostava de dar plantão…

Era do tipo que ficava a noite toda bebendo. Gostava de beber a última cerveja – a saideira – vendo o sol nascer. E sempre saía feliz, calmo, renovado ao raiar da manhã. Às vezes ia direto trabalhar. Outras, passava em casa, tomava um banho e dava um rápido cochilo, de umas duas horas no máximo. “O bagulho é louco, Joe!”, dizia.

Outra característica sua: tinha uma série de namoradas em tudo que era canto – “Nada sério, Joe!” E era amigo de várias garotas da noite. Tão amigo que, às vezes, ia encontrá-las para, apenas e tão somente, beberem algo juntos. Elas gostavam dele, que além de tudo sabia se mexer ao som de um bom samba-rock, o que deixava tudo quanto era mulher morrendo de vontade de dançar com ele.

Certa vez, numa madrugada chuvosa, entrou numa das boates que conhecia. Viu que não havia movimento algum e que as meninas estavam todas paradas, quase dormindo. Decidiu então que não ficaria ali. “Vou em outra pegada para dançar samba-rock.” As moças, ouvindo aquilo, decidiram que todas iriam acompanhá-lo. Pediram dispensa ao gerente da casa que, também por ser amigo de Roberval, liberou as garotas e, pasmem, fechou a boate. E lá se foram todas as nove mulheres no Caveirão. Como, ninguém sabe. Mas que elas dançaram o resto daquela madrugada e se divertiram com ele, ah, isso sim.

O único dia/noite sagrado para ele era o sábado. “Ih, valente, nem me chame para sair no sábado porque é o dia em que me dedico à minha mulher. Faço tudo o que ela me pede: vou ao mercado, ajudo até na limpeza da casa e a levo para jantar. Pode ser pizzaria, churrascaria, o que for. Mas o dia é do meu docinho.”

Passado o sábado, mesmo que chegassem tarde em casa, saía de manhã bem cedo no domingo. Compromisso sagrado: o jogo de bola com o time do bairro. Depois do bate-bola, claro, o churrasco e a cervejada com a equipe, que se estendia por todo o dia, ainda mais em caso de vitória. Chegava por volta da meia-noite, tomava um bom banho e conversava com a mulher e os filhos – sim, era um bom pai, que queria saber como andava a lição de casa da garotada. Ia dormir e, logo no primeiro raiar da segunda-feira, acordava com uma disposição ímpar.

“Qual é a finta, Joe?”, indagava ao atendente da padaria, onde impreterivelmente tomava seu tradicional café puro, como uma espécie de saudação para o que as noites e madrugadas reservavam a ele. Entrava no Caveirão e lá ia Roberval, feliz da vida, pronto para as “correrias” de mais uma semana.

A música da semana – 9 a 13 abril/2012

Um sopro de esperança é a que me remete esta bela canção de Eduardo Gudin e Paulinho da Viola, desde a primeira vez que a ouvi – lá se vão anos e não me recordo quando e onde isso aconteceu. Mas não importa. O que vale é a crença de que por mais complicada que sejam as relações amorosas, sempre há espaço para ir adiante. E se houver real alquimia entre os amantes, a volta é mera questão de tempo e servirá para reconstruir, com maior propriedade, uma história. Simples, terna e bonita, como devem ser tais histórias.

Ainda mais
(Eduardo Gudin / Paulinho da Viola)

Foi como tudo na vida que o tempo desfaz
Quando menos se quer
Uma desilusão assim
Faz a gente perder a fé
E ninguém é feliz, viu
Se o amor não lhe quer
Mas enfim, como posso fingir
E pensar em você como um caso qualquer
Se entre nós tudo terminou
Eu ainda não sei mulher
E por mim não irei renunciar
Antes de ver o que eu não vi em seu olhar
Antes que a derradeira chama que ficou
Não queira mais queimar
Vai, que toda verdade de um amor
O tempo traz
Quem sabe um dia você volta para mim
E amando ainda mais

E eis a música na voz de Dona Inah, acompanhada pelo próprio Gudin:

Bom-dia!

Tudo começava às 8 horas. Já na saída do prédio, o primeiro cumprimento: “Bom-dia, Joaquim!” O porteiro sorria, e talvez por ser algo tão frequente, nem se dava o trabalho de responder.

Daí em diante, a cena se repetia. Olhar atento às pessoas com que cruzava no trajeto até o ponto de ônibus embaixo do Elevado, Artur fazia questão de saudar, na mesma intensidade, quem passasse por ele. E esperava a resposta.

“Bom-dia, moço”, “bom-dia, moça”, “bom-dia, senhor”, “bom-dia, senhora”, “bom-dia, menina”… O que mudava, apenas, era o vocativo, a quem dirigia o cumprimento. No geral, as pessoas atendiam e gostavam da saudação. Na pressa, na correria do dia a dia, o gesto gentil de Artur fazia diferença e praticamente todos paravam para vê-lo. Ou seja, o que seria normal, esperado era simplesmente inusitado.

E assim ia: subia no ônibus, cumprimentava o motorista, o cobrador e os passageiros. A viagem toda era repleta de “bom-dias”. Religiosamente, descia no primeiro ponto na avenida Guaicurus. Quase sempre trajava camiseta de manga curta e um calção que lhe cobria os joelhos. Não levava nenhuma mala nem pasta. Nos dias mais frios, usava uma camiseta manga comprida, às vezes uma jaqueta jeans. E calça esportiva.

Em algumas datas festivas, acrescentava um “boa Páscoa”, “bom Carnaval”, “bom Natal”, “bom Ano Novo” ao cumprimento matinal. Era difícil não responder ao nosso amigo. Tinha um jeitão simpático, de pessoa de bem. Ao mesmo tempo, ficava claro que ele tinha algo de diferente.

Certa tarde, uma senhora, a quem Artur abordara ao subir no ônibus, o reencontrou em frente ao Parque da Água Branca. “Ô meu filho, tá lembrado de mim? Você foi tão simpático de manhã. Boa tarde, viu!”, disse. Ele a olhou e respondeu: “Me desculpe, mas minha tarde não é nada boa.” Aquela resposta intrigara a mulher: “Como assim, não entendi… Algum problema? Está precisando de ajuda?”

Artur respirou fundo. E com os olhos tristonhos passou a explicar: “Sabe, é que daqui a pouco vai virar noite. E terei de esperar até amanhã para ver o dia e saudar as pessoas… Por isso, não gosto de tarde muito menos de noite. É difícil, é difícil. Vivo sozinho e a solidão me deixa mal, amuado, pois não sei o que fazer à tarde. À noite, ainda me resta ligar a TV, ficar sonolento e dormir. Sabe, antes até passeava de ônibus no final da tarde, mas acho que as pessoas, cansadas do trabalho, preferiam virar a cara quando as cumprimentava e fingiam tirar um cochilo. Daí que não tem mais ‘boa tarde’ nem ‘boa noite’ para mim.”

Tudo voltava ao normal somente no dia seguinte. Da cara fechada e do andar de cabeça baixa das tardes e da solidão da noite, Artur ficava radiante somente quando desejava “bom-dia” às pessoas no seu trajeto matinal.

A música da semana – 2 a 6 abril/2012

Tendo como inspiração a semana da Páscoa, a trilha semanal relembra uma canção de Gilberto Gil, que sintetiza uma espécie de reflexão sobre o ser e o estar no mundo. “Retiros espirituais”, de 1975, serve para se pensar sobre a vida, a necessidade que às vezes temos de estar com a solidão. Quem preferir, há uma versão dessa música, somente voz e violão, presente no disco “Gil Luminoso”.

Retiros espirituais
(Gilberto Gil)

Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas a fio com ela
Bárbara, bela, tela de TV

Você há de achar gozado
Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo
Que gente maluca gosta de fazer 

Eu diria mais, tudo não passa
Dos espíritos sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido 

Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo
Pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo
Vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo
Que gente maluca gosta de sonhar 

Eu diria, sonhar com você jaz
Nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido 

Nos meus retiros espirituais
Descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado
Ter que resolver de ambos os lados
De minha equação
Que gente maluca tem que resolver 

Eu diria, o problema se reduz
Aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo que eu disse
Reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, ó
Luar tão cândido 

Para quem preferir, eis o vídeo:

Régis e a varanda

Régis morava no Centro Velho. O apartamento antigo, localizado na rua Rego Freitas, era de bom tamanho para ele e Daiane. Residiam no oitavo andar, de onde costumavam observar, da varanda, o vai-e-vem apressado das pessoas.

Estavam juntos pouco mais de dois anos. Andavam sempre um ao lado do outro. Puro amor. Aquela relação fora fruto de uma paixão à primeira vista. Ela o olhara. Ele lhe dera uma piscada rápida. “Você é uma gracinha, quero que vá morar comigo”, dissera, logo de primeira, aquela bela loura.

Apenas uma coisa incomodava Régis. A mania de Daiane receber seus amigos homens em casa. Sim, sentia ciúmes e não sabia como disfarçar. Até tentava, mas não conseguia. E ela, percebendo isso, ficava brava com a situação. “É apenas um amigo, nada mais que isso. Daqui a pouco, ele vai embora e quero que você coloque a cabeça no meu colo, tá?”, dizia, numa tentativa de acalmá-lo. Ele se fazia de surdo, dava as costas quando ouvia isso e rumava para a varanda. Ficava a olhar, perdidamente, o movimento da rua.

Nos últimos tempos, os ciúmes de Régis só faziam aumentar e atormentar o seu relacionamento com Daiane. Já não escondia o descontentamento cada vez que um amigo dela vinha visitá-los. E isso ficava patente já ao soar da campainha, quando se punha a reclamar em alto e bom som.

Daiane passou a se sentir incomodada. Apesar de dividirem o mesmo espaço, a mesma cama, não podia tolerar a falta de educação de Régis com seus amigos. E olhe que ela recebia apenas um amigo por vez. Nunca deixara que houvesse mais de um convidado.

Até que a bela loura ficou cansada, irritada mesmo. “Chega! Já que você sempre vem se refugiar aqui na varanda, fique aí e não entre na sala enquanto eu estiver acompanhada. Aliás, sempre que um amigo meu vier me visitar, não saia da varanda, tá legal?”

Aquilo mexeu com ele de tal forma… Ah, que vontade de botar rua afora todos aqueles amigos de sua amada. Ficava bravo com a maneira carinhosa com que ela os tratava. E tomado por uma enxurrada de ciúmes, do tipo que deixa o cidadão cego, surdo e mudo, não pestanejou. Naquele final de tarde, enquanto Daiane ria com outro de seus amigos, foi à beira da varanda. Olhou para a rua. E pulou.

Em questão de minutos, uma multidão circundava aquele corpo estatelado e todo ensanguentado na calçada. Mais algum tempo e uma viatura da polícia parou no local. “Seu louco, por quê! Por que, meu Deus!”, gritava aos prantos Daiane. O pior é que se passou mais de uma hora até que o caminhão de entulho da prefeitura chegasse. Sim, pois o centro de zoonoses não recolhia animal morto.

Não se sabe onde o corpo daquele vira-lata foi parar. Nem mais onde está Daiane. Que teve de mudar de endereço, por pressão da síndica, que depois do ocorrido não quis mais saber de garota de programa morando naquele prédio.