A noite é bela e a boemia mais ainda

Quem sempre diz isso é um grande amigo meu, que continua sendo um genuíno amante da boemia paulistana. Som de Cristal, Óbvio, Barracão de Zinco, Galeria Metrópole, Paulistano da Glória… por todos esses áureos locais meu amigo andou. E ele continua interessado e frequentando novos espaços.

Nunca fui da noite. Mas a convivência com pessoas pra lá de especiais me fizeram olhar, com carinho e respeito, para a forma como a noite embala os sonhos, devaneios, risos e sofrimentos daqueles que sabem reverenciar as andanças noturnas. E se houver música, a noite fica ainda mais bem embalada.

Dizem que não é possível fazer amigos nem se apaixonar ao pôr-do-sol. Devo ser exceção, pois grande parte das amizades que tenho (e aí não coloco os conhecidos) e algumas paixões floresceram nessa situação. Enfim, faço coro ao meu amigo, mencionado anteriormente, para garantir que, de fato, a noite é bela.

Considero a música selecionada uma das mais singelas e lindas que conheço. O que mais me chama a atenção é que a canção só poderia ter, como um dos autores, um autêntico boêmio de alma cândida, o mestre Vanzolini. Para quem não conhece ou mesmo para relembrar, eis “Na boca da noite”. E, claro, um viva a boemia!

 

Na boca da noite

(Paulo Vanzolini / Toquinho)

 

Cheguei na boca da noite, parti de madrugada
Eu não disse que ficava nem você perguntou nada
Na hora que eu ia indo, dormia tão descansada,
Respiração tão macia, morena nem parecia
Que a fronha estava molhada Vi um rosto na janela, parei na beira da estrada
Cheguei na boca da noite, saí de madrugada
Gente da nossa estampa não pede juras nem faz,
Ama e passa, e não demonstra sua guerra, sua paz
Quando o galo me chamou, eu parti sem olhar pra trás
Porque, morena, eu sabia, se olhasse, não conseguia
Sair dali nunca mais
O vento vai pra onde quer, a água corre pro mar
Nuvem alta em mão de vento é o jeito da água voltar
Morena, se acaso um dia tempestade te apanhar
Não foge da ventania, da chuva que rodopia,
Sou eu mesmo a te abraçar

 

E aqui o vídeo, na bela voz da Márcia…

Vanzolini, o “velho ateu”

Tive o privilégio de ver Vanzolini algumas vezes – umas mais próximo outras distantes do palco. A imagem que ilustra esse post foi feita em 2012, em um bar na Vila Monumento, próximo à sua casa, em um final de tarde de sábado. Nesse dia, mestre Vanzolini, além de beber sua cerveja, ouvir as músicas interpretadas pelo enteado (ao seu lado) e cochilar um pouquinho (pois ninguém é de ferro), deu uma canja juntando Cartola com Adoniran Barbosa.

 

2012-04-28 18.47.42

 

Lembro-me de outra ocasião, no Sesc Pompeia, em que, cético, achava que a choperia não era o local mais apropriado para uma apresentação sua. Ledo engano. Lá estavam ele – contando as histórias de suas composições – ao lado de sua parceira Ana Bernardo e de Carlinhos Vergueiro. E, incrível, o que mais me chamou a atenção foi a maneira como aqueles jovens, na faixa dos 20 e poucos anos, entoavam as canções que, confesso, a muito custo fui aprendendo ao longo da vida.

Dias antes de seu falecimento, na roda de samba do grupo Brasilidades, o compositor Roberto Riberti, parceiro de outro maestro (nesse caso, Eduardo Gudin), disse que não se recordava se a letra da canção, que escolhi para essa semana, havia sido feita em homenagem a Vanzolini. Riberti, respondendo-lhe diretamente, indagou: “Mas por quê?” “Ah, é porque eu sou um velho ateu”, foi a resposta. Pois bem, “Velho Ateu” é a música da semana do blog.

 

Velho Ateu

(Eduardo Gudin/Roberto Riberti)

Um velho ateu
Um bêbado cantor, poeta
Na madrugada cantava essa canção-seresta

Se eu fosse Deus
A vida bem que melhorava
Se eu fosse Deus
Daria aos que não têm nada

E toda janela fechava
Pros versos que aquele poeta cantava
Talvez por medo das palavras
De um velho de mãos desarmadas

 

Eis o vídeo para quem preferir, na voz da queridíssima Dona Inah: